A Vida Mística

03/04/2011 19:05

DO LIVRO: O SANTUÁRIO DO EU

 

No mundo das máquinas, diz-se que a eficiência implica na coordenação de todas as partes de uma máquina para alguma finalidade válida. Uma máquina complexa e eficiente, consistindo de engrenagens, eixos, êmbolos e rodas motrizes, tem de ter cada uma destas peças não só para funcionar ou estar em movimento, como também elas têm de concorrer para a finalidade para a qual a máquina foi criada. A eficiência desta consiste em cada parte contribuir para o todo, fazer algo para que a máquina cumpra sua finalidade; do contrário, se a máquina simplesmente funciona, se, apenas, opera e nada realiza, torna-se fruto do desperdício da energia da mente do projetista e de todas as mentes que contribuíram para a sua construção. E, também, desperdício de material valioso do qual se compõe.

Pois bem, se isto é válido no mundo das máquinas, o é muito mais em nossa vida individual. Portanto, na vida, a eficiência consiste da aplicação de nossa existência a algum propósito Cósmico que a justifique. Presumindo que cada um de nós é uma máquina, não basta que sejamos máquinas saudáveis ou que organicamente nossa função seja correta, ou que tenhamos e mantenhamos bastante energia e vitalidade (ou vigor, como se diz normalmente), mas que todas estas coisas sejam usadas para uma missão, para a finalidade para a qual fomos individualmente criados.

Por conseguinte, um aspecto da vida, e que é ignorado pela maioria das pessoas, é a vida mística. A vida mística proporciona a razão por que vivemos. A vida mística determina a causa da nossa existência individual e o uso que deveríamos dar ao nosso corpo e à nossa vitalidade e magnetismo animais. A vida mística, como a vida física, requer certo preparo. Se temos de estudar as regras da alimentação, se temos de estudar higiene, se temos de saber os rudimentos da boa saúde para sermos saudáveis e fisicamente normais, por certo, também, deveríamos dar alguma atenção e consideração ao lado místico de nossa existência. Também temos de nos preparar para ele de um modo inteligente.

Talvez o primeiro requisito no preparo para a vida mística seja abandonar todas as concepções populares sobre o que um místico deveria ser. O místico não é uma pessoa que se enquadre num padrão objetivo. Ele não tem um tipo determinado; isto é, não tem uma figura característica, como Papai Noel. O místico é aquele que adota determinada atitude mental. Como todo aquele que tem um ideal nobre, ele nem sempre o indica em si.

O místico é um homem — isto é, pertence à espécie Homo sapiens — como todos nós. Por conseguinte, é muitíssimo mortal, sujeito, às vezes, a todas as fraquezas e tentações de um ser humano. Tem, naturalmente, todas as variações físicas encontradas em qualquer ser, em meio à multidão que passa. Além disso, a vida mística não tem raízes raciais. O sangue asiático não pode produzir místicos maiores do que o pode o sangue que corre nas veias de um ocidental. É igualmente uma ilusão imaginar que a localização geográfica estimula a atitude mística da mente. Não existe atmosfera especial no Tibete, no Egito, na China ou na índia, capaz de impregnar de atributos místicos todos os que simplesmente lá residem.

Como o ouro, os elementos do misticismo estão onde quer que os encontremos — isto é, onde quer que os sintamos.

É bom acrescentar que os atributos do misticismo não são necessariamente herdados. As qualidades fundamentais estão latentes em todo indivíduo — em algumas pessoas elas podem produzir um fanático ortodoxo, insensível, na realidade, às doutrinas do misticismo. A compreensão um tanto singular da vida, que se diz que um místico tem, não é um dom Cósmico.

Em linguagem simples, a atitude mística da mente (que é mostrada) não é uma concepção Divina. O místico é uma pessoa que evoluiu; ele deve usar as faculdades que possui, despertando suas qualidades latentes, e dirigi-las para o canal que constitui a atitude mística da mente. Ã interpretação mística da vida não é um manto misterioso que baixa sobre um indivíduo e o distingue, propositadamente, dos outros homens.

Portanto, ao abraçarmos voluntariamente a vida mística, primeiro é necessário livrar nossa mente de todos os preconceitos e predisposições, das opiniões que formamos, das conclusões a que chegamos arbitrariamente, e especialmente do que ouvimos dizer. Temos de nos despir mentalmente, livrarmo-nos com firmeza do manto no qual nos envolvemos inconscientemente, por força do hábito, a cada ano que passa. Temos de libertar nossa mente de todos esses empecilhos e estar preparados para aceitar somente aquelas coisas que, como disse o famoso filósofo Descartes, despertam dentro de nós a sua aceitação intuitiva, uma sensação de que são verdades e que constituem conhecimento real.

Francis Bacon, eminente filósofo Declarou, Temos de abordar a vida como se saíssemos pela primeira vez de uma sala escura para outra, iluminada, sem qualquer antecipação ou expectativa sobre o que iremos ver ou ouvir e, então, submeter cada experiência à nossa própria análise, sem colori-las com a análise alheia. Aquele que realmente deseja abordar a vida mística de um modo franco, na esperança de então ser capaz de governar-se adequadamente, não pode ser um covarde. Não deve temer a opinião pública; nem, tampouco, hesitar em combater ou desafiar a tradição.

Contudo, no estágio final da vida mística, as coisas criadas, as coisas do mundo, não mais ocultam Deus da consciência do místico. Ele está bastante cônscio da natureza de Deus, mas também sua percepção de Deus não mais oculta sua consciência das coisas terrenas. Deus é visto como o criador, e o universo, como coisa criada. Em outras palavras, no estágio final da vida do místico dá-se um equilíbrio e o homem tem igual apreciação da lei e da manifestação da lei. Este estado final da vida mística é adequadamente chamado de sobriedade pelos místicos islâmicos. É a sobriedade da compreensão, a temperança da compreensão. Não é nem a consciência objetiva extrema nem a Consciência Divina extrema.

O misticismo tradicional pode ser reduzido a estes princípios fundamentais: a alma é o eu espiritual do homem; a alma é parte de uma alma universal, uma alma que penetra todo o universo. Essa alma é Deus. O mundo material e o corpo físico são o lado negativo desta alma absoluta e positiva, ou Deus, que permeia o universo — uma espécie de imperfeição, um afastamento da bondade; e quando a alma está contida numa forma física ou corpo, o homem como uma unidade de alma e corpo não é perfeito. O corpo, o material, tem de ser harmonizado com a alma, o imaterial. O homem será confinado num corpo, em várias vidas, enquanto permitir que as tentações, os desejos e apetites dominem sua natureza. Deve, ao contrário, esforçar-se por superá-las, suprimi-las, dar-se inteiramente àqueles impulsos espirituais que existem em sua própria natureza; esses impulsos são os ditames da consciência que encontra sua expressão na conduta ética, moral e religiosa.

O misticismo moderno, que é baseado nestes velhos princípios fundamentais, não declara que o corpo material e o mundo físico e terreno não tenham* base ou existência, que sejam produtos da imaginação, não-seres, ou malignos. Declara, sim, que não são dignos de confiança e que não podemos perceber sua verdadeira natureza. Por mudarem constantemente, assim como os sentidos do homem, amanhã podem não ser como os percebemos hoje. Portanto, não se deve dar crédito às suas manifestações. Entretanto, o misticismo moderno os reconhece como parte do plano universal, mas imperfeitos - isto é, menos amplos em contraste com a mente ou a inteligência de Deus, o Absoluto.

Recomenda-se um estudo e um exame deste mundo material e terreno, de modo que o homem possa tentar, dentro do seu poder limitado, regulá-lo, impedir que ele o controle ou domine. O misticismo recomenda estudo e aprendizado intensivos, de modo que o homem possa conhecer a relação desta fase terrena, material e imperfeita com o absoluto perfeito, ou Deus. Assim, o misticismo moderno declara que, na realidade, existe uma dualidade no universo, mas que, em essência, ele é UM. Todas as coisas são desse UM, embora existam diferentes estágios de perfeição. O mundo material e suas manifestações não são considerados tão perfeitos quanto o mundo espiritual, mas dele fazem parte. A dualidade entra na concepção, declarando, por um lado, que a alma, uma parte do todo absoluto, é boa, e que tudo o mais, em contraste, muito embora dele faça parte, é por graus escalonados, menos perfeito.

Portanto, cabe ao indivíduo, que se declara um estudioso do misticismo moderno e aspirante à vida mística, fazer análise muito meticulosa de termos e assuntos como: o absoluto, o espiritual, o ser, o reino material, o livre arbítrio, e a atitude científica do espírito. Estes fundamentos, e alguns mais como eles, são as pedras fundamentais da sua filosofia se pretender tornar-se filósofo místico. Aquele que tem um conhecimento profundo destes fundamentos não terá dificuldade em, de modo racional, agrupá-los e reagrupá-los num sistema que o ajudará a atingir seu objetivo. Supomos que esse objetivo seja aquela satisfação íntima e harmonização que os verdadeiros místicos declaram constituir "um sentido de Deus".